4. Matéria e forma na criação artística.
Por António Ramos Rosa[i]
Será possível estabelecer uma demarcação nítida entre
matéria (no sentido que lhe confere Jeanne Hersch) e forma? Se, por um lado,
não é lícito duvidar de uma suposta polaridade ou, por outros termos, da
oposição dialética entre dado e criação, por outro, é extremamente problemático
determinar onde acaba a matéria e principia a forma. Porque, afinal, o dado
puro, virgem, ou realizável, qualquer dado que seja isento da marca humana é
indeterminável. Note-se, em primeiro lugar, que a indeterminabilidade da linha
divisória entre matéria e forma já é, já de si, um sinal da liberdade humana.
Se fosse possível demarcar de uma vez para sempre a tal ‘linha
divisória’, não seria possível qualquer atividade investigadora, teorização,
crítica – tudo estaria prescrito, (...), pois a própria categoria do possível
teria sido eliminada. Todavia, da dificuldade – ou talvez mesmo da
impossibilidade de separar a matéria da forma, o dado objetivo da criação ou da
teoria e crítica – não se deve inferir a inexistência da criação. Sem o ‘não-eu’
não se depreenderia a atividade e a luta do eu no processo criador, aliás, no
processo total da realidade humana. Em vários domínios, inclusive o da arte, haveria
a transformação de um dado, uma matéria em, cujo objeto, uma criação se encarna
autonomamente no próprio dado e, por conseguinte, só nele a forma existe. A
forma “é”. (...)
A mobilidade da linha de demarcação entre matéria e forma,
que é um índice capital da liberdade humana, responderá cada qual de maneira
mais ou menos justa, inclusive aos arbitrários de plantão que negam, por
consequência, a própria liberdade da condição humana; e que provam sua negação,
praticamente, por este próprio ato. Note-se: a impossibilidade teórica de negar
a indeterminação essencial dessa linha demarcatória é essencial da realidade
humana.
Seja qual for uma posição ideológica que se assuma, o certo
é que não se pode negar a impossibilidade de separação entre matéria e forma e,
quando se pretende ignorá-la, ou escondê-la, surge arbitrariedade dogmática – o
peso bruto e irrevogável da matéria, da determinação, ou, pelo contrário, o
predomínio absoluto do espírito, a
soberania de um artista transcendental que domina todas as contingências, que
desfaz todas as opacidades – como se o sistema literário não fosse uma tríade
inseparável, distinta e indeterminável.
[i]
ROSA, António Ramos. A poesia moderna e a interrogação do real - I. Editora
Arcádia. Lisboa: 1977.